Guardai-vos dos ídolos

“Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendimento para reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna.” I João 5:20
Ao final de sua primeira carta, o Apóstolo João faz uma síntese do que escrevera até ali. Em I Jo 5:20, encontramos a sequência didática – saber, entender e reconhecer – que se soma ao ‘estar no verdadeiro’, Deus e, Nele, a vida eterna.
Ao diferenciar o ‘saber’ do ‘entender’, ‘reconhecer’ e, principalmente, ‘estar’, João desmonta, mais uma vez, as bases das falsas doutrinas apregoadas pelos anticristos, que tinham saído do meio da Igreja para negar a divindade de Jesus e irem contra o fato de que Ele é o Cristo. E o Apóstolo vai além, ao afirmar que a única forma de permanecer na Verdade é viver a vida como Jesus viveu – I João 2:6.
O fundamento do discipulado é esse: experimentar em si mesmo o estilo de vida e os ensinamentos de Jesus, pois nisso se manifesta o Reino de Deus. “É praticar a justiça de Deus no mundo, que inclui a justificação do autor do pecado e também da vítima do pecado, da injustiça e da violência. Deus revelou a si mesmo de modo completo e definitivo em Jesus Cristo. A morte já foi vencida e a batalha contra o reinado de satanás já foi decidida, na certeza da vitória de Cristo pela cruz e sua ressurreição” [1].
Devemos lembrar que as cartas de João foram escritas no ano 96 ou 97 d.C., portanto, imediatamente após a redação do Evangelho de João. As controvérsias que tinham agitado a Igreja nos dias de Paulo já tinham sido superadas – Atos 15. O próprio Apóstolo Paulo tinha sido martirizado em Roma 30 anos antes. João sucedeu Paulo como supervisor das igrejas na Ásia Menor e fixara residência em Éfeso. Jerusalém tinha sido destruída pelos romanos há mais de 25 anos. Se esvaíram as perseguições dos cristãos impetradas pelos judeus.

As dificuldades eram todas internas, ou seja, falsos profetas que deturpavam o cristianismo com heresias e práticas imorais.
Um líder chamado Cerinto divulgava que Jesus não era Deus. Sua presença incomodava tanto que, de acordo com a tradição cristã, ao entrar em um banho público e perceber que seu adversário lá estava, o Apóstolo João saiu imediatamente e gritava que o telhado deveria cair sobre as cabeças dos que lá ficassem, como um sinal do Juízo de Deus.
Muito provavelmente resultado de uma cisma no seio da Igreja – I João 2:19 – os chamados anticristos criaram um sincretismo com práticas pagãs da religiões gregas e passaram a entregar o próprio corpo à dissolução, por acreditarem que todo mal estava na carne e todo bem exclusivamente no espírito. Por isso, não importaria o seu comportamento aqui – estava criado o gnosticismo, sucessor do docetismo [2] propagado por Cerinto e seus seguidores.
O final da primeira carta de João abriu espaço para muitas discussões, sobre quais os ídolos aos quais ele se referia – I João 5:21.
Aparentemente, o autor sabia a quais ídolos específicos se referia e assumiu que seus leitores também entenderiam.
Em conexão com a cultura pagã da época, a apostasia para evitar o martírio incluía o sacrificar a ídolos – Atos 17:16.
Outros entendem que a menção aos ídolos na passagem é mais metafórica do que literal, o que apontaria para a ‘idolatria espiritual’ – ver I Coríntios 10:7 e 14 com Êxodo 32:1-6; Efésios 5:5; Colossenses 3:5.
Uma vez que o autor passou quase a totalidade da carta discutindo, de uma forma ou de outra, contra os oponentes e seus falsos ensinamentos, não seria surpreendente encontrá-lo aqui referindo-se ao curso da idolatria que estes hereges perseguiam em seus corações.
Assim, parece melhor concluir que o aviso final para evitar a idolatria tem a ver com evitar o falso ensino herético. Pois a maior idolatria é a que contrapõe Cristo ao próprio ser humano, ou melhor, ao próprio eu.
[1] MOLTMANN, Jürgen. Ética da esperança. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.
[2] Docetismo é uma heresia surgida no final do século I, que afirmava que Jesus apenas aparentava ser humano. Afirmava que o corpo humano de Cristo era um fantasma e de que seus sofrimentos e morte foram meras aparências. Negavam a humanidade de Cristo, mas afirmavam a divindade. O docetismo já estava presente nos tempos do final da vida do Apóstolo João, como fica claro em sua exortação contra aqueles que negam que “Jesus Cristo veio em carne” – I João 4:2.
Luciano Sathler Professor de Escola Dominical Membro na IM Central em Santo André