A vida em segundo plano

Uma reflexão a partir do documentário “O holocausto brasileiro”
Desde tempos imemoriais a sociedade encontra jeitos de eliminar do seu meio os que considera indesejáveis. Os poetas, os sonhadores, os loucos ou, simplesmente, quem não se encaixa ou não aceita que a ordem das coisas seja inalterável. Não é bem-vindo quem se emociona com a fragilidade do outro. Não é querido quem se posiciona em prol dos mais fracos e desfavorecidos. Para os que ousam se indignar contra os poderes estabelecidos resta a perseguição, a prisão ou a morte – vide a crucificação de Cristo. Essa é a ordem do mundo. Mas, definitivamente, não é o ordenamento de Deus.
Assisti recentemente o documentário “O holocausto brasileiro” (1), baseado em livro homônimo (2), que relata a tragédia vivida por centenas de milhares de pessoas no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, em Minas Gerais, especialmente de 1930 a 1980. Conhecido como Hospital Colônia, funcionou como um depósito onde o Estado Brasileiro e muitas famílias deixavam os desvalidos, os lunáticos, os incapazes ou, simplesmente, alguém que se queria eliminar do convívio.
Eu creio que tanto o livro quanto o documentário são de consumo obrigatório para quem quer entender o ponto de barbárie e insanidade ao qual chegamos na crise carcerária no Brasil. Fazemos parte de uma sociedade que prefere abandonar e esquecer, torcendo pela morte dos que se foram. Quem fica feliz com o assassinato de presos é contrário ao que anunciou Jesus, num eco a Isaías, quando iniciou seu ministério: “O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a apregoar liberdade aos cativos, a dar vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor” – Lucas 4:18-19.
Na tragédia brasileira do Hospital Colônia, os pacientes internados à força foram submetidos ao frio, à fome, a doenças e eletrochoques. Torturados, violentados, abandonados ao relento e mortos. Seus órgãos foram vendidos, num comércio vil do pouco ou quase nada que lhes restava. Enviadas em trens, eram encarceradas pessoas deprimidas, epilépticas, alcóolatras, meninas pobres e sadias engravidadas pelos patrões, mulheres rejeitadas pelos maridos machistas, crianças abandonadas pelos pais por não serem perfeitas e outros tipos rejeitados pela sociedade da época.
Abordar esses assuntos é nomear o desagradável. As pessoas internadas num local que, a princípio, deveria servir para curar ou melhorar sua qualidade de vida, na verdade, eram condenadas à morte pelo total abandono. Enquanto vivas, eram expostas às mais variadas indignidades. Uma tragédia patrocinada pelo Estado, com a conivência da classe médica e da população. A ampla maioria dos internos era formada por miseráveis negros, um efeito claro da forma desumana com a qual se deu a abolição da escravatura no Brasil.
Uma sociedade só pode ser qualificada como saudável pela forma com a qual trata seus idosos, suas crianças e os segmentos mais frágeis da população. “As verdades permanecem por trás das formas – símbolos. Todo fenômeno é símbolo de uma verdade ” (3).
Ver o caos ao qual chegamos nas penitenciárias brasileiras e na Segurança Pública demonstra que a atitude e as inclinações da sociedade não mudaram muito em relação ao tempo de funcionamento do Hospital Colônia. Cabe aos cristãos se posicionarem contra esse sentimento pró-morte, na busca de soluções que passem pela valorização absoluta da vida, pela igualdade de oportunidades e recursos e na defesa dos valores presentes no Reino de Deus.
1. O documentário encontra-se disponível na íntegra em <https://goo.gl/pacnNb> acesso em 31/01/2017.
2. O livro foi disponibilizado em versão digital pelo Observatório Nacional de Saúde Mental e Justiça Criminal no link <https://goo.gl/7tk6Uw> acesso em 31/01/2017.
2. GIDE, A. A volta do filho pródigo, p. 18. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
Luciano Sathler Professor de Escola Dominical Membro na IM Central em Santo André